Rubro e negro

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Passei por ele sem cumprimentá-lo, como de costume e ódio. Sentei à mesa. Percebi que havia três xícaras dispostas e limpas sobre ela – de pai, irmã e... dele. Agora minha. Café no copo para o despertar completo do sono e leitura vespertinos. Enquanto o café esfriava a cozinha ganhava movimento e despertava junto. Antes natureza-morta. Chegava meu pai, irmã e... ao me ver ele voltou. Depois de tanto tempo de aversão, finalmente ele aprendeu que qualquer ambiente era pequeno demais pra nós dois. Uma lição proposta sem diálogos, teorias; na prática bruta, conforme os fatos. Que fique o primeiro. Meu pai foi convidá-lo à mesa novamente, ele poderia levar isso como uma razão mais forte para aceitar. E aceitou. Como se meu pai não tivesse a moral definhada e desbotada conforme o tempo e acontecimentos. E aceitou sem se sentar, apesar da cadeira estar totalmente à mercê. Sei que ela continuava fiel a mim, ao contrário de quem a pôs assim. Minha irmã colocou café pra ele, meu pai na insistência incômoda de sempre, enquanto ele ficava rodando pela cozinha à procura de um lugar mais confortável do que à mesa. Ouço meu sobrinho chamar meu nome, ou umas vogais dele, isso fez meu ódio ficar em segundo plano automaticamente. Era a brecha que ele precisava, e sentou aliviado. Na mesma mesa. Bebi um gole de café e finalmente fui para o quarto. Pode ter se sentido um vencedor, um vencedor ignorado, desgraçado, fraco e pequeno. Não hoje, não aqui, mas há de chegar o momento de eu enfim me dar por vencido: ver a pele dele encolhendo, rente ao osso a cada jorro de sangue liberto, tornando-o vermelho, pelo avesso. Dissolver aquele tom com querosene, e fogo.

se o mundo acabar amanhã eu acabaria antes dele

O fato de eu querer costurar a boca dele com seus dois olhos dentro não me torna tão malvado assim. Mesmo que com uma agulha em alta temperatura e linha com cerol. Assim, seria difícil ele ‘falar’ em libras ou pantomima o que havia dito esse tempo todo. Amputaria seus dedos por garantia, mas substituiria por lápis com tabuada – para deixar uma aparência menos hostil. E também o enfeitaria com um colar fixo de alfinetes milimetricamente dispostos ao redor do pescoço. Ah, essas leis, essa moral, a cadeia... Se não fosse isso já teria feito e rido tanto. Estaria morto, mas satisfeito. Por isso, terei que esperar o fim do mundo chegar de fato, porque, como vês, em minha mente ele acontece o tempo todo. Às vezes somos questionados com questões que nos fazem refletir sobre o que faríamos se o mundo acabasse amanhã. Mas um dia é muito pouco. Tem crueldades que duram mais de um dia. Não dá tempo! Esse aviso, alerta, ou nesse caso, conselho que circula por aí dizendo que o mundo acabará em 2012 é proveitoso. Um Carpe Diem eufêmico. Mas infelizmente, na minha lista de coisas-apocalípticas-para-fazer constam na maioria itens que mexerão com a moral a que me foi atribuída e com as leis. Eu seria preso e não poderia completar a lista, nem veria a claridade do fim do mundo pelas lentes de um rayban ao lado de um mendigo. O mundo atual não me deixa fazer tudo a tempo, porque antes do mundo poder acabar as leis deveriam virar ficção antes. Daí então, eu poderia ‘me atirar na orgia’ e o próprio mundo acabaria antes do prazo.

entrego

- Corta essa, maluco!
Era tudo que ele precisava dizer antes de dar três tiros naquele merda. Um no olho direito, outro no meio do tórax, e naquela maldita garganta. Pausadamente. Agora ele teria que falar com o capeta em libras. Como minha alma agradeceria a divina sensação de ser mirado por aqueles olhos assustados, me vendo por um ângulo fotográfico que me deixa mais bonito, mais narciso. E eu lá de cima, retribuindo a fixação com minhas sobrancelhas altivas. Entraria na sorveteria, tomaria um sorvete de maracujina enquanto fumava um cigarro com biteira. Não conseguiria ouvir o caos sonoro que os delinquentes daquela rua sem graça provocava, mas sentia o sangue secando sobre os paralelepípedos aquecidos tão uniformemente pelo sol. E eu contemplava minha arte como quando reparo nas de Dalí. Aquilo sim era surrealismo! Mas então, os sentimentalistas sufocariam minha escultura e a polícia chegaria cortando o barato de minha exposição. Me entrego e aceno. Tenho orgulho de meu talento. Tenho o ego quando invento.